Lisy Salum

Reflexões sobre o discernimento e inteiração das culturas visual, indígena, afro-brasileira: um problema de concepção, territorialidade e identidade


Palestra sobre o tema “Cultura visual no Brasil influenciada pelas culturas indígena e afro-brasileira” do evento Negros, índios e o Brasil: diálogos na cultura, em 17/3/2010

É impossível evitar um enfoque sócio-antropológico, que às vezes se sobrepõe ao estético, quando se aborda as artes e a cultura visual de negros ou relativa ao segmento negro no Brasil como já dissemos de outra vez. E isso vale também para os povos indígenas. Pois não importa de que cultura visual se trate, estaremos diante da manipulação de conteúdos simbólicos, e, no caso da brasileira, isso se dá, naturalmente, em contexto nacional global, não específico ou particular. Onde, então, estariam os elementos diferenciais, para não dizer minoritários socialmente, passíveis de serem decodificados e compreendidos por todos? E como, diante do passado em que pesa a dialética colonização-escravidão?

O que se aponta com clareza é a maestria em alto grau dos detentores da linguagem visual entre as culturas tradicionais. Indígenas e africanos sempre reservaram a ela um papel essencial, às vezes mais importante do que a própria palavra. Da etnografia dos bakuba (R.D.Congo) tem-se que o soberano, nyim, “fala” com a espada na mão. Não nos cabe aqui dizer se a cultura visual brasileira abrange esse ou outros elemento da cultura visual dos bakuba ou de tantas múltiplas culturas das Américas ou da África formadoras da sociedade brasileira. Não é por acaso que, diante do contato de das mudanças sociais, vemos a possibilidade excepcional da transposição de texto oral para a narrativa gráfica, aqui ilustrado através da “escrita” da mitologia dos dessana (Amazônia) por Luis Lana, seja valendo-se de metáforas, seja se apropriando de representações por semelhança. Um outro exemplo oposto vem de um artista contemporâneo, Naguib, de Moçambique, que se reporta ao corpo humano como metáfora do universo, ou ao passado, retomando elementos da cultura material regional de onde nasceu e vive. Uma de suas obras leva o nome de Efabulírica: “de enfabular”, “criar fábulas”, “fantasiar [com lírica, que é ‘poesia cantada’”.

Um fator, porém, que nos parece fundamental para a abordagem da “visualidade” dessas culturas é a expressão eloqüente da importância do território e da territorialidade, o que, para além dos contornos político-geográficos, remete ao espaço social constituído, ou a um espaço em busca de legitimação. Nada mais natural encontrar isso na produção visual afro-brasileira, tendo-se que os descendentes de negros e de africanos trazidos à força como escravos ao Brasil durante mais de quatro séculos constituem —mesmo sendo “minoria”— mais de 50% da população brasileira. Voltando-nos às populações indígenas, valeria ressaltar que o espaço que se diz a eles reservado não é o mesmo em que residem seus mortos recentes, que é o de sues antepassados distantes —usurpado deles, donos responsáveis que foram por gerações milenares. Igual se teria do segmento negro não tivessem sido eles os que construíram o Brasil enquanto nação moderna de fato—ainda que sem o devido reconhecimento—, isto antes mesmo da vinda de outros segmentos sociais, imigrantes, de origem européia e asiática: o segmento negro no Brasil formou-se em terras brasileiras e não africanas.

Nessa direção, não há nada mais contundente para refletir sobre o problema do que a abordagem do espaço natural face ao construído por alguns daqueles que nos parecem bem representar esses segmentos culturais nas artes visuais brasileiras, que seja também pela cultura material. Vemos então os elementos consagrados e sua expressão em cores e formas, consistências, odores e temperaturas dos templos e altares dos cultos afro-brasileiros, espaços estes presenciais, visuais, embora muitas vezes proibidos aos olhares não iniciados; ou as instalações icônicas, mas rigorosamente museológicas, de um Ronaldo Rêgo. Vai daí também a antropomorfização da paisagem, dos elementos desconhecidos do mundo imaterial, e aqui retomamos os dessana, mas agora por Feliciano Lana, consagrado como um dos mais reconhecidos artistas indígenas no Exterior, assim chamado “Filho dos desenhos de sonhos”.

O apelo ao equilíbrio ambiental e cosmogônico e à afirmação de uma identidade sócio-cultural, nesses e em outros exemplos de obras e artistas que revelam o debate tradição-modernidade entre nós, talvez sejam um indício importante do que a cultura visual no Brasil teria de contribuição do povo brasileiro.


Caixa Cultural, São Paulo, 17/3/2010

Professora Lisy Salum (MAE/USP)